Novo episódio do Podcast Papo Filosófico

sexta-feira, 20 de abril de 2012

ESPECIFICIDADES DO DISCURSO RELIGIOSO: O ETHOS E A MIDIA ESPÍRITA


Artigo apresentado no Siniel 2012 © Simpósio do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem
Departamento de Letras e Ciências Humanas – Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Simpósio Temático Linguagem & Gêneros/Tradições Discursivas 2
Coordenadores Eva Martha Eckkrammer [Universität Mannheim] e Lucrécio
Araújo de Sá Junior [UFRN]


ESPECIFICIDADES DO DISCURSO RELIGIOSO: O ETHOS E A MIDIA ESPÍRITA

José Antonio Ferreira da Silva[1]

RESUMO:

Sendo o discurso uma materialização da ideologia (ORLANDI, 2010), acreditamos que os elementos linguísticos são pistas discursivas que textualizam ideologias subjacentes a sua formação. Com o discurso religioso não é diferente. Entendemos, também, que o campo religioso utiliza os espaços midiáticos como instância de realizações da atualização da questão da fé, ou seja, as instituições religiosas percebem os meios de comunicação não somente como instrumentos, mas organizam-se a partir dos recursos estruturais dos gêneros do discurso, sociointeragindo para apropriar-se dos meios que legitimem tais instituições como agentes midiáticos. Criam-se, dessa forma, imagens dos fiéis e para os fiéis, quase sempre com fins proselitistas, ou na intenção de manter determinados posicionamentos de suas doutrinas. Com a intenção de compreender algumas especificidades do discurso religioso, o presente artigo tem como objetivo apurar o ethos da revista Reformador, uma publicação da Federação Espírita Brasileira, bem como verificar a idealização, construída discursivamente, do fiel (espírita), veiculada pelos editoriais publicados nessa revista. Nosso interesse nesse tipo de estudo advém da observação da forte presença do discurso espírita na mídia, além de constatar o grande número de pessoas que se envolvem com tal discurso; a ponto de fazerem com que essa doutrina conte com cerca de vinte milhões de adeptos só no Brasil, adquirindo dimensões de uma nova religião, com hospitais, escolas e obras de caridade. Sem falar que essa doutrina popularizou em nosso país uma vasta literatura, que abrange poemas, contos, romances e obras de cunho científico, filosófico e religioso (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009). Fundamentamos este artigo nos estudos inseridos no âmbito da Análise do Discurso de linha francesa, mediante as teorias sobre o ethos, mídium e cena de enunciação de Maingueneau (2008a; 2008b; 2008c; 2008d; 2009; 2010; 2011). Quanto ao estudo dos discursos das mídias, partiremos dos conceitos teóricos de Charaudeau (2008; 2010).

PALAVRAS-CHAVES: Discurso. Ethos. Ideologia. Mídia.

ABSTRACT:

As the speech is the ideology materialization (ORLANDI,2010), we believe the linguistic elements are discursive signals that contextualize underlying ideology to its formation. In the religious speech is not different. We also can understand that the religious field uses the media spaces as instance of achievements of the update on the matter of faith, in other words, the religious institutions see the media not only as instruments, but they organize themselves from the structural features from the genres of discourses, socially interacting to appropriate the means which can legitimize such institutions as media agents. In this way, images of faithful and for faithful are created, almost always for proselytizing purposes, or with the intent of maintaining certain positions of their doctrines. Intending to comprehend some specificities of the religious speech, this article aim to investigate the ethos in Reformador magazine, a publication by Federação Espírita Brasileira, as well to check the idealization, discursively constructed, from the spiritist faithful transmitted by the editorials published in that magazine. Our interest in this kind of study comes from the observation of the strong presence of the spiritist discourse in the media, besides finding many people who are involved by such discourse; to point of making this doctrine have about twenty millions of adepts only in Brazil, acquiring measurements of a new religion, with hospitals, schools and charities. Not to mention that this doctrine has popularized a vast literature in our country, comprising poems, stories, novels and works of scientific, philosophical and religious nature (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009). We based this article in the studies within the scope of Discourse Analysis from French approach, by theories about the ethos, medium and scene of the Annunciation by Maingueneau (2008a; 2008b; 2008c; 2008d; 2009; 2010; 2011). About the studies of the media discourses, we start from the theoretical concepts of Charaudeau (2008; 2010).

KEY WORDS: Discourse. Ethos. Ideology. Media.

1 INTRODUÇÃO

Supostamente, toda religião se fundamenta em princípios ideológicos, já que apresenta determinados ideais de homem, de sociedade e de mundo. Porém, por pertencer cada qual a uma religião, ou ainda, por não pertencer a nenhuma, os indivíduos apresentam diferenças em seus modos de pensar e agir, o que revela uma heterogeneidade intersubjetiva.

Com a intenção de compreender algumas especificidades do discurso religioso, o presente artigo tem como objetivo apurar o ethos da revista Reformador, uma publicação da Feb – Federação Espírita Brasileira, bem como verificar a idealização, construída discursivamente, do fiel (espírita), veiculada pelos editoriais publicados nessa revista.

Existem diversos estudos que analisam editoriais, sob várias perspectivas, como a política, a humorística, a sociológica, a religiosa etc. Apesar disso, observamos que existe uma lacuna deixada por esses estudos, pois esses trabalhos, quando tratam do aspecto religioso, apenas fazem a análise dentro das perspectivas católica, neopentecostal e de outros credos; mas no campo espírita tal análise não existe. Acreditamos que isso ocorra porque,

Discutir temas ligados à religião é um caminho com curvas tortuosas e perigosas. [...] Se o tema da religião é desafiador, mais desafiador ainda é o tema do Espiritismo por ser uma crença religiosa que conforme estudiosos (STOLL 2004, GIUMBELLI 1997) foi (e, ainda é), alvo de preconceitos e rejeições comprovadas, figurando como um discurso indesejado. (GONÇALVES, 2011, p. 16).

Observando esse fato, mas também constatando outra realidade, ou seja, que há significativa expansão no lançamento de filmes, livros, peças teatrais, novelas televisivas e jornais, além de diversos outros tipos de produção que trazem a temática espírita como centro ou pano de fundo, sentimos a necessidade de fazer uma análise em que se busque identificar quais os elementos constitutivos do gênero editorial da revista Reformador, o que será um primeiro passo para suprir a lacuna existente.

Escolhemos esse periódico para extrair o material que constituirá o corpus do nosso estudo não apenas por ser uma revista que é publicada mensalmente há mais de cem anos, e que é órgão oficial da Feb – Federação Espírita Brasileira, instituição que coordena e representa o movimento espírita no Brasil; mas também porque, apesar de ter como principal público a comunidade espírita do país, essa revista é responsável por significativa parcela da divulgação das ações daquele movimento no território nacional, difundindo, assim, a visão da instituição, e consequentemente a do espiritismo no Brasil, para além da comunidade espírita.

Tendo em vista que o discurso é um objeto multifacetado, porque provido de variadas características, o ethos se oferece como apropriado a uma orientação de trabalho voltada ao estudo do discurso religioso na mídia. Entendemos que é fundamental estudar as várias maneiras pelas quais esse movimento religioso se comunica com a população, já que, atualmente, ele consegue se fazer ouvir por meio das diversas mídias, dentre elas a impressa.

Tomar, pois, conhecimento das especificidades do discurso religioso espírita foi o que nos impeliu a este estudo; o que se nos afigura pertinente, justamente porque será através de uma leitura e reflexão, usando a Análise do Discurso, que passaremos a compreender as intenções e sentidos reais por trás dos textos desse discurso. Fundamentaremos este artigo nos estudos inseridos no âmbito da Análise do Discurso de linha francesa, mediante as teorias sobre o ethos, mídium e cena de enunciação de Maingueneau (2008a; 2008b; 2008c; 2008d; 2009; 2010; 2011).

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ETHOS DO ENUNCIADOR E SOBRE O PATHOS DO ENUNCIATÁRIO

Conforme Charaudeau e Maingueneau (2008) o termo ethos foi tomado emprestado da retórica antiga. Designa a imagem que o enunciador exibe de si, no seu discurso, com a intenção de exercer algum tipo de influência sobre seu alocutário. Tendo sido retomada em ciências da linguagem e, principalmente, na Análise do discurso, essa noção refere-se às várias modalidades linguísticas e extralinguísticas de apresentação de si, no discurso, com intenção persuasiva.

Segundo Amossy (2008), o ato de criação de um discurso acarreta a confecção de uma imagem de si. Mas para criar essa imagem o enunciador não precisa fazer uma espécie de autobiografia, descrevendo-se intimamente, pois seu estilo, seus conhecimentos, crenças e sua maneira de escrever são o bastante para deixar pistas que ajudarão o leitor a identificar e criar um retrato desse enunciador. Percebemos, então, que ao afirmar-se o enunciador cria uma imagem de si no discurso. Depreende-se que a imagem criada do enunciador age no campo discursivo, afetando o processo de comunicação e sendo parte constituinte da ação enunciativa. O que não significa dizer que essa imagem equivalha, necessariamente, ao caráter real do enunciador.

Na Análise do Discurso temos como principal expoente dos estudos do ethos, Maingueneau. Para ele, esse conceito nos permite uma visão mais geral da posição do sujeito em seu discurso. Ademais, o ethos se estende além dos enunciados orais, conforme podemos ler a seguir:

Minha primeira deformação (alguns dirão ‘traição’) do ethos consistiu em reformulá-lo em um quadro da análise do discurso que, longe de reservá-lo à eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, propõe que qualquer discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de um tom que indica quem o disse: o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral: pode-se falar do “tom” de um livro. (MAINGUENEAU, 2008 a, p. 71-72)

Entendemos então que o discurso escrito apresenta uma vocalidade específica, pela qual podemos construir o ethos. Ele se apresenta por meio de três características: tom, caráter e corporalidade. O Tom equivale ao discurso contido na enunciação; o caráter, entendemos como sendo o conjunto dos traços psicológicos, e a corporalidade, compreendemos como as características físicas e o modo de agir no espaço social (MAINGUENEAU, 2009).

O ethos vincula-se ao orador principalmente através das escolhas linguísticas feitas por ele. Como se tais escolhas fossem o tom, o modo de dizer expresso pelo autor para atingir o seu leitor. Todavia, não podemos esquecer que “(...) o ethos se mostra no ato de enunciação, mas não se diz no enunciado.” (MAINGUENEAU, 2009, p. 268). Sendo sua característica permanecer em um plano secundário da enunciação, devendo ser percebido, não, porém, ser objeto do discurso. Além disso, não podemos esquecer, conforme diz Fiorin, que “o éthos é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discursivo, um autor implícito” (2008, p.139). Entendendo, ainda, que o ethos não se encontra totalmente explícito no enunciado, mas, sim, na enunciação (FIORIN, 2008, p. 139).

Podemos dizer, assim, que em um discurso o ethos resulta da interação de vários fatores: do ethos pré-discursivo, do ethos discursivo (ethos mostrado) e dos fragmentos do texto em que o enunciador lembra a própria enunciação (ethos dito), diretamente (“é um amigo que vos fala”) ou indiretamente, por meio de metáforas ou alusões a cenas de outras falas (MAINGUENEAU, 2009). Pode-se fazer a distinção entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo da seguinte forma: o ethos pré-discursivo seria a imagem que o co-enunciador faz do enunciador, antes mesmo que este último tome a palavra para si.

O ethos está intimamente ligado ao ato de enunciação, não se podendo ignorar que é o público que constrói as representações do ethos do enunciador antes mesmo dele começar a falar. Por isso a necessidade, como já foi dito, de se distinguir entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo. Para essa distinção deve-se levar em consideração a multiplicidade de gêneros do discurso e de posicionamentos, não podendo pertencer a nenhum plano absoluto. Mesmo que o destinatário nada saiba antes do ethos do locutor, apenas o fato do texto pertencer a um dado gênero do discurso ou a certo posicionamento ideológico cria expectativas referentes ao ethos (MAIGUENEAU, 2009).

Em linhas gerais, captar o ethos nem sempre é simples, visto que depende do grau de percepção e interpretação do leitor, que retira as informações necessárias do conteúdo linguístico e também do contexto, relacionando-os ao ethos. Apesar dessa complexidade na identificação do ethos, estabelece Maingueneau:

O ethos constitui, assim, um articulador de grande polivalência. Recusa toda separação entre o texto e o corpo, mas também entre o mundo representado e a enunciação que o traz: a qualidade do ethos remete a um fiador que, através desse ethos, proporciona a si mesmo uma identidade em correlação direta com o mundo que cabe fazer surgir. Encontramos aqui o paradoxo de toda cenografia: o fiador que sustenta a enunciação deve legitimá-la por meio de seu próprio enunciado, seu modo de dizer. (2009, p. 278)

Conforme se viu, mesmo de interpretação subjetiva, o ethos é um importante recurso de persuasão no discurso, sendo legitimado no enunciado. Mas, perguntar-se-á, como encontrar na materialidade discursiva da totalidade dos textos as marcas do ethos. Podemos identificá-las, segundo Fiorin:

Dentro desse todo, procuram-se recorrências em qualquer elemento composicional do discurso ou do texto: na escolha do assunto, na construção das personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo, na figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc. (2008, p. 143).

Podemos concluir que o ethos se constrói no discurso, nas escolhas feitas pelo enunciador; sendo essas escolhas por meio das decisões linguísticas e estilísticas. Mas não só assim, pois, por estar o ethos imbricado no ato da enunciação, no discurso, poder-se-á construir a imagem do enunciador sem que esse se manifeste. Apenas pelas representações de espaço, significações históricas e do contexto de que ele faz parte. Podendo-se, assim, traçar o perfil dessa imagem. Por isso nos esclarece Maingueneau:

A problemática do ethos pede que não se reduza a interpretação dos enunciados a uma simples decodificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível se põe na comunicação verbal. As ‘ideias’ suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e invisível, o co-enunciador faz mais que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela enunciação, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada, permitindo ele próprio que um fiador encarne. O poder de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de ele constranger o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele esquemático ou investido de valores historicamente especificados (2008b, p.29).

Assim sendo, quando se faz uso de todos esses recursos, o enunciador demonstra, através de seu discurso, sua ideologia, suas crenças. E isso pode ser estrategicamente construído por ele de acordo com os objetivos almejados, ainda mais se dentre esses objetivos estiver persuadir e doutrinar.

É preciso destacar, ainda, que o campo enunciativo faz supor um eu e um tu, quer dizer, existirá sempre um enunciador e um enunciatário implícitos. Imagens do autor e do leitor construídos pelo texto. Não são, certamente, enunciadores e enunciatários reais, mas de instâncias subjetivas produzidas pelo discurso. Desse modo, é através do discurso que são projetadas as imagens do sujeito, de si e do outro. Depreendendo-se que, enquanto o ethos relaciona-se com a imagem do enunciador, o pathos está relacionado à imagem do enunciatário, e são ambos construídos concomitantemente pela enunciação (FIORIN, 2008).

Podemos entender o pathos, segundo Fiorin (2008), como o estado de espírito do auditório, que se associa às paixões do ouvinte. É a disposição do enunciatário para ser determinada coisa. Sem esquecer que não estamos diante da disposição real do auditório, porém da imagem do enunciatário criada pelo enunciador. Dessa forma, o enunciatário também participa da construção do discurso, pois há uma ligação entre pathos e ethos. Essa ligação consiste no fato de que, se por um lado o pathos constrói a imagem do enunciatário, por outro, o ethos constrói a do enunciador.

Um discurso que convence, e consequentemente consegue a adesão dos sujeitos, deverá inspirar confiança no enunciatário, atingindo, assim, o seu propósito comunicacional.

A eficácia discursiva está diretamente ligada à questão da adesão do enunciatário ao discurso. O enunciatário não adere ao discurso apenas porque ele é apresentado como um conjunto de ideias que expressa seus possíveis interesses, mas sim, porque se identifica com um dado sujeito da enunciação, com um caráter, com um corpo, com um tom. Assim, o discurso não é apenas um conteúdo, mas também um modo de dizer, que constrói os sujeitos da enunciação. O discurso, ao construir um enunciador, constrói também seu correlato, o enunciatário (FIORIN, 2008, p. 157).

Assim sendo, o enunciatário adere a um discurso ao compartilhar com o enunciador dos mesmos pontos de vista, juízos e valores, i.e., existe identificação entre ambos. Assim, em determinados gêneros textuais, como o editorial, por exemplo, o editorialista constrói, dentro do seu discurso, a imagem que ele pretende que se tenha dele, da mesma forma que tenta delimitar as reações dos seus interlocutores (leitores).

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE “CENA DA ENUNCIAÇÃO” E “MÍDIUM”

Segundo Maingueneau (2008a), do ponto de vista da Análise do Discurso, não nos podemos contentar com a retórica tradicional, e fazer do ethos um meio apenas de persuasão, pois ele é parte fundamental na constituição da cena de enunciação, com a mesma importância que tem o vocabulário ou as formas de difusão que ao enunciado implica por seu tipo de existência. Ao discurso, para ser enunciado, pressupõe-se essa cena enunciativa, que deverá por ele ser validada em sua própria enunciação: “qualquer discurso, por seu próprio desdobramento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 75).

Por isso, podemos dizer que é fundamental, para que alguns discursos obtenham respaldo, observar-se o de onde se fala. Para isso necessitamos compreender o conceito de cena de enunciação. A cena de enunciação está dividida em três aspectos: cena englobante, cena genérica e cenografia. Para entendermos, vejamos as definições de Maingueneau:

A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma ‘instituição discursiva’: o editorial, o sermão, o guia turístico, a visita médica... Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética etc. (2008a, p. 75) (grifos nossos)

O que valida a cenografia são as marcas textuais, tanto de elementos paratextuais como também de marcas explícitas avalizadas por outras falas:

A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar, como convém, a política, a filosofia, a ciência... São os conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar a própria cena e o próprio ethos, pelos quais esses conteúdos surgem (MAINGUENEAU, 2008a, p. 77).

Como iremos analisar editoriais, precisamos compreender, conforme Maingueneau, que, “um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada (2011, p. 85). Sem esquecermos que os enunciados religiosos estão vinculados a uma cena englobante religiosa; ou seja, um enunciado religioso, em termos práticos, está ligado a um discurso religioso no qual o autor, por exemplo, tem especificidades que lhe são peculiares, como, por exemplo, a divulgação de suas doutrinas. No caso de editoriais de uma revista espírita, encontraremos, certamente, mecanismos linguísticos e discursivos que nos comprovam que o editorialista defende pontos doutrinários que para ele são mais significativos dentro do conjunto de princípios que são defendidos pelo próprio Espiritismo.

É preciso considerar também, e como de suma importância, o modo de manifestação material dos discursos, ou seja, o suporte e seu modo de difusão. Maingueneau (2011) chama esse meio de transmissão de mídium, esclarecendo-nos que ele imprime certas características aos seus conteúdos, comandando os usos que dele poderão ser feitos. Pois “o mídium não é um simples ‘meio’, um instrumento para transportar uma mensagem estável: uma mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2011, p. 72). Depreendemos, a partir do que foi dito, que tendo como suporte uma revista espírita, por exemplo, qualquer gênero discursivo já sofre certa modificação, principalmente um editorial, que por si só já carrega o discurso da instituição que o mantém.

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE DISCURSO E IDEOLOGIA

Considerando-se que este artigo está ancorado nos postulados teóricos da Análise do Discurso, é pertinente recapitularmos alguns conceitos sobre discurso e ideologia, para podermos melhor identificar e compreender as ideologias presentes no discurso religioso dos editoriais da revista escolhida como objeto deste estudo. Discorreremos, portanto, acerca das concepções de discurso que a Análise do Discurso de linha francesa abarca.

Conforme Orlandi (2010), o discurso é o espaço do qual se pode observar a relação que se estabelece entre língua e ideologia, para assim compreender a forma como a língua gera sentidos por e para os sujeitos. A autora sintetiza com a seguinte definição: “o discurso é efeito de sentidos entre locutores” (2010, p. 21). Podemos entender, assim, que discursos não são propriamente as palavras, mas onde e ao que elas nos levam. Talvez seja por isso que Maingueneau estabeleça que “o discurso é uma organização situada além da frase” (2011, p. 52), tendo-se em vista que uma mesma frase pode ter, em contextos distintos, valores e implicações diferentes. Reforça ainda Maingueneau (2011, p. 53) que o discurso é construído com uma finalidade e para dirigir-se a determinado lugar. É pertinente, portanto, considerarmos que, para interpretarmos adequadamente um enunciado, precisamos bem mais que conhecer apenas a gramática e o léxico de uma língua. Pois para atribuirmos sentido a um enunciado precisamos, dentre outras coisas, de um contexto específico, já que um único enunciado em dois lugares distintos corresponde a dois discursos distintos.

Mesmo compreendendo que o discurso está além da frase, é preciso considerar que os elementos linguísticos são pistas discursivas que textualizam ideologias subjacentes a sua formação. Já que “o sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua – com a história”; então para que se desvende o sentido, “é preciso que a história intervenha, pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante” (Orlandi, 2010, p. 47). Podemos concluir, então, que nesse processo cada palavra também tem o seu valor significativo, visto que, segundo S. Júnior, “as palavras pesam, são fardos pejados de significação, de uma significação orientada” (2006, p. 37), ou seja, carregadas de ideologias.

Dentro dessa perspectiva, entendemos que não existe discurso neutro. São várias as vozes a determiná-lo por coerções ideológicas. E essas podem ser, por exemplo, as idealizações do espírita esperado por determinada instituição religiosa como sendo o correto. Então, talvez, nos sujeitos que fazem parte de uma determinada religião – que doutrinariamente os faz supor que determinadas obras e/ou autores são “antidoutrinários” –, inconscientemente, essa marca ideológica se faz presente, fazendo-os repetir o discurso daquela instituição. Reforçando o que diz Orlandi: “ideologia e inconsciente estão materialmente ligados” (2010, p. 47).

5 CONSIDERAÇÕES SOBRE MÍDIA E GÊNEROS DISCURSIVOS

Concordamos com Charaudeau que “abordar as mídias para tentar analisar o discurso de informação não é uma tarefa fácil” (2010, p 17). E quando esses espaços midiáticos são usados pelos campos religiosos, muito menos. Entendemos que as religiões usam os espaços da mídia como instância de realizações da atualização da questão da fé; ou seja, as instituições religiosas percebem os meios de comunicação não somente como instrumentos, pois organizam-se a partir dos recursos estruturais dos gêneros do discurso, sociointeragindo para apropriar-se dos meios que as legitimem com agentes midiáticos. E assim, através da escolha do que informar ou não informar, terminam influenciando os seus leitores, que são também seus adeptos. Para melhor compreendermos isso, recorremos, novamente, a Charaudeau. Segundo ele as mídias impõem o que constroem do espaço público, e não apenas transmitem o que ocorre na realidade social; sabendo-se, ainda, que “a informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem não é transparente ao mundo [...]” (2010, p. 19).

A função de uma revista, por exemplo, dentro do contexto religioso onde é produzida e para quem é destinada, não é tão simples quanto parece. Aparentemente é só mais um meio de comunicação cujo único objetivo é informar e discutir sobre os principais acontecimentos desse contexto. No entanto, por menos que se queira, sempre acaba transformando-se em um produtor de opiniões. Isso ocorre das mais diversas formas. A simples escolha de um assunto em detrimento de outro – o que será comentado em um editorial – já é uma forma de influenciar. Entendemos que

Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeito de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim das contas, escolhas de estratégias discursivas (CHARAUDEAU, 2010, p. 39).

Compreendemos, então, que a mídia é utilizada pelas religiões não apenas para divulgar seus princípios, mas também para direcionar os fiéis através de um processo de identificação com um ethos criado através de mecanismos linguísticos e discursivos, especialmente para um fiel idealizado que chamaríamos de pathos. Pois é através dessas estratégias linguísticas e discursivas que o editorialista constrói, em seu discurso, a imagem que ele pretende que se tenha dele. Assim também, de certa forma, determina a reação do seu interlocutor, guiando nessa ou naquela direção ideológica dentro da sua própria formação discursiva.

Podemos entender o editorial, inicialmente, como um texto jornalístico cujo conteúdo expressa a opinião da equipe de redação, do editorialista, sem acarretar, necessariamente, a obrigação de o jornalista ater-se a nenhuma forma de imparcialidade ou objetividade. O editorialista tem relativa liberdade para expressar seus pontos de vista, desde que fundamentados e devidamente argumentados (CHARAUDEAU, 2010).

É claro que além do que foi exposto, no caso de um editorial de uma revista religiosa, deve-se acrescentar que fundamental é a imagem de credibilidade que, construída pelo jornalista ou pela equipe responsável pelo editorial, representa a própria instituição responsável pelo periódico. Pois “[...] a fala em um gênero do discurso não parte de qualquer um para qualquer um, mas de um indivíduo possuidor de certo estatuto social para outro” (MAINGUENEAU, 2010, p. 205). O editorialista, tendo em vista a necessidade de ser considerado respeitável pelos seus leitores, constrói o ethos, a imagem de si, que seja capaz de transmitir a verdade. Esse ethos de credibilidade se constrói pela adoção de uma postura austera e de pleno domínio do que o seu texto está veiculando. Utilizando, para isso, argumentos de autoridade devidamente escolhidos dentro de um padrão que poderíamos chamar doutrinário. E isso toma um aspecto maior quando, por exemplo, a revista que serve de suporte para esse editorial expressa o pensamento de uma instituição que representa o espiritismo no Brasil.

6 CONSIDERAÇÕES SOBRE ESPIRITISMO, FEB E REFORMADOR

O Espiritismo é uma doutrina nascida na França e muito difundida no Brasil. Essa doutrina popularizou em nosso país uma vasta literatura, que abrange poemas, contos, romances e obras de cunho científico, filosófico e religioso. Possuindo, também, diversos periódicos, entre jornais e revistas, impressos e virtuais. Segundo Marion Aubreé e François Laplantine

O Espiritismo origina-se de um movimento americano (o “moder spiritualism”), nascido em 1847, numa pequena cidade do estado de Nova York no noroeste dos Estados Unidos. Em poucos anos, conta com milhões de adeptos nos Estados Unidos. Envia missões à Europa, primeiro à Inglaterra, depois à Alemanha e à França. E o lionês Allan Kardec transforma o que não passava de jogo de sociedade em sistema doutrinal, cujo eixo é a reencarnação e o progresso social, ou mais precisamente, o progresso social através da reencarnação (2009, p. 22).

Apresentado por Allan Kardec, no livro O que é o espiritismo, como “(...) uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal” (1998: 10). Configura-se como uma tríplice-doutrina, ou seja, que é ao mesmo tempo ciência, filosofia e religião. Vejamos o que diz Gonçalves:

O Espiritismo emerge como doutrina religiosa com um conjunto de discursos que definem uma formação discursiva peculiar. Estes discursos, gerados sob a perspectiva da mediunidade, circulam com um estatuto, definido por Kardec, de um dizer que se singulariza por funcionar, simultaneamente, com um discurso cientifico: trata da ciência que rege o mundo dos Espíritos; filosófico: é uma resposta às questões da existência humana; e religioso: toma como referencial discursivo a moral cristã. A doutrina está constituída por um conjunto de discursos materializados em cinco livros denominados de a codificação Espírita e, ainda, pelos livros que compõem a literatura complementar: seja aquela produzida pelos adeptos estudiosos da doutrina; seja pelos sujeitos-médiuns-psicógrafos, conhecida com a “literatura mediúnica” (2011, p. 112).

É importante conhecermos também aqueles que são os pontos fundamentais para essa doutrina. Para isso, recorramos novamente a Gonçalves:

A doutrina Espírita elege como verdades basilares os seguintes princípios: a existência de Deus; a existência do Espírito; a imortalidade da alma; as vidas sucessivas através da reencarnação; a pluralidade dos mundos habitados; o livre arbítrio e o intercâmbio espiritual entre o mundo físico e o extra físico. Para tratar desses temas, a doutrina constrói um dizer que se constitui como um discurso específico, regularizado (2011, p. 116).

Esses discursos circulam tendo o apoio e o controle de uma instituição, a FEB, Federação Espírita Brasileira. Conforme está em seu site, ela foi fundada no dia 2 de janeiro de 1884, no Rio de Janeiro, por Augusto Elias da Silva. A trajetória da FEB tem sido dedicada a servir e a difundir a Doutrina codificada por Allan Kardec. Desde cedo firmou-se a Instituição na segura orientação de tornar o Espiritismo estreitamente vinculado ao Evangelho. Duas etapas da Revelação separadas no tempo, mas convergentes e complementares, como sobressai claramente do contexto da Codificação.

Desde sua fundação, a FEB manteve-se firme no propósito de divulgar o Espiritismo. Publicou milhões de livros que difundiram a Doutrina Espírita. Busca, permanentemente, a prática da caridade no seu sentido mais amplo, dando assistência material e espiritual aos necessitados, seja por meio do trabalho em suas próprias dependências, seja por meio do estímulo e do apoio a todos os núcleos espíritas. A Casa de Ismael, como também é conhecida a Federação, já tem 128 anos de história. E ao longo desse tempo tornou-se referência em relação à Doutrina Espírita, à literatura de qualidade, ao ensino edificante e à dedicação às obras assistências, tendo sempre à frente de seus trabalhos a premissa: "Deus, Cristo e Caridade".

É dentro da FEB que nasce a revista Reformador. Segundo as informações contidas no site já citado, foi Augusto Elias da Silva que concretizou uma aspiração não somente sua, mas de muitos espíritas de sua época. Desde 1865 os espiritistas brasileiros sentiam a necessidade de propagar a Doutrina dos Espíritos por meio da imprensa. Naquela época o Espiritismo contava já com muitos adeptos, no Rio de Janeiro, na Bahia, em São Paulo e em outras províncias. Em 1869 surgiu na Bahia o primeiro órgão da imprensa espírita brasileira, O Écho d"Além-Túmulo, fundado e dirigido por Luís Olímpio Teles de Menezes. Consideráveis tentativas haviam sido feitas também no Rio de Janeiro, com o objetivo de propagar a Doutrina por meio da imprensa. É então que o fotógrafo de profissão, Augusto Elias da Silva, idealiza, funda e faz circular o Reformador. "Abre caminho, saudando os homens do presente que também o foram do passado e ainda hão de ser os do futuro, mais um batalhador da paz: o Reformador”. Com essas palavras iniciais apresentava-se, em 21 de janeiro de 1883, o novo órgão da imprensa espírita. Há muito o Reformador se tornou o mais antigo periódico da imprensa espírita brasileira. Em todo o mundo, ocupa o quinto lugar em antiguidade. Registram os Anais da Biblioteca Nacional (Vol. 85) ser o Reformador um dos quatro periódicos surgidos no Rio de Janeiro, de 1808 a 1889, que sobreviveram até os dias de hoje. São eles, pela ordem: Jornal do Commercio (1827); Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839); Diário Oficial (1862); Reformador (1883). À exceção do Diário Oficial, Reformador é o único que jamais teve interrompida sua publicação.

É pertinente comentarmos que o Espiritismo, no Brasil e em outros países, deve à imprensa parte de sua grande popularização. Isso não apenas em seu surgimento, mas ainda nos dias de hoje a mídia é um poderoso instrumento de divulgação dessa doutrina. Em relação a esse dado comentaram Marion Aubreé e François Laplantine, quando escrevem:

Se o Espiritismo se difunde com surpreendente rapidez (em alguns anos a obra de Kardec se espalha pelo mundo inteiro), é graças à intensificação dos meios de comunicação que se articulam a partir da segunda metade do século XIX: as estradas de ferro, os transportes marítimos que levam multidões de imigrantes para a América e, sobretudo a imprensa. Coloca-se em prática estruturas de comunicação que evoluem segundo as descobertas técnicas. [...] E redes de correspondentes no mundo inteiro alimentam as revistas (que não param de se multiplicar) com informações vindas dos Estados Unidos, da França, do Brasil, do Além (2009, p. 65).

Outros trabalhos acadêmicos também se referiram ao mesmo fato. É o caso da tese de Sandra Jacqueline Stoll, que fora transformada no livro “Espiritismo à brasileira”, no qual ela diz:

O Rio de Janeiro, em 1865, e Salvador, em 1873, sediam os dois primeiros grupos kardecistas constituídos no Brasil. Deles fizeram parte membros da colônia francesa instalada na Corte, além de integrantes das elites e classes médias locais, dentre os quais se destacavam intelectuais, médicos, engenheiros e militares.

Fazendo da literatura, ou melhor, da escrita, o principal instrumento de divulgação da doutrina de Allan Kardec, estes dois grupos foram responsáveis pela edição do primeiro periódico espírita brasileiro, Echos de Além-Túmulo, lançado na Bahia em 1865, e pela publicação, em 1860, do primeiro livro espírita editado no Brasil. (2003, p. 49-50)

Esses dados apenas comprovam a importância da imprensa espírita e a pertinência da nossa intenção em estudar as especificidades do discurso religioso na mídia espírita.

7 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MATERIAL E A ANÁLISE

O corpus do presente estudo é constituído por três editoriais da revista Reformador, todos do ano de 2011, abordando assuntos diversos. A análise ancorou-se nos elementos da Análise do Discurso, especificamente nos conceitos de Dominique Maingueneau sobre a constituição do ethos. À luz de tais conceitos os referidos editoriais foram examinados e cotejados na tentativa de verificarmos através dos ethe[2] apurados a idealização, construída discursivamente, do fiel espírita, ou seja, a imagem criada do leitor desses editoriais (o pathos), e os conceitos doutrinários (ideologias) usados para atingir e, talvez, influenciar esses mesmos leitores.

Começamos nossa análise a partir do próprio título da revista – Reformador –, que já nos deixa transparecer o indício da intenção de modificar e transformar algo ou alguém. Além disso, o termo Reformador remete a uma memória discursiva que faz referência às reformas religiosas. E se considerarmos o seu subtítulo – Revista de Espiritismo Cristão – podemos subentender, ainda, que a mesma pretende restabelecer ou produzir alguma reforma nesse campo. O que de fato já ocorre quando acrescenta o adjetivo Cristão para especificar espiritismo. Poderíamos até dizer que essa ação linguística já representa a construção do ethos dito, quando se faz alusão a um tipo de Espiritismo, o Cristão. Consideramos essa ação linguística como sendo também ideológica, por a mesma delimitar o campo e a abordagem da própria revista. E isso ocorre, talvez, na intenção de atender ou influenciar os leitores ao espiritismo religioso, visto que, como já foi explicado anteriormente, o Espiritismo é uma doutrina tríplice – ciência, filosofia e religião. Com o uso do adjetivo Cristão depreende-se que a revista tomará preferência pelo aspecto religioso.

Os editoriais do Reformador estão localizados na quarta página da revista, atrás do expediente, contando-se, também, a capa e contracapa. O editorial ocupa uma página inteira. Nos números a que tive acesso, os editoriais tinham por função apresentar e desenvolver o tema central da capa (primeira página). Vale salientar que os mesmos não são assinados. Foram analisados os seguintes números: 2.184, referente a março de 2011; 2.190, referente a setembro de 2011, e 2.192, referente a novembro de 2011. Os assuntos abordados nos editoriais são independentes, não seguem nenhuma sequência; e, é importante que se diga, a escolha desses números não teve nenhuma motivação especial, apenas a disponibilidade dos periódicos.

No primeiro editorial aqui analisado, o do número 2.184, o tema abordado é: A paz que Jesus deixou. Pelo título e pelo fato do editorial começar com uma citação do Evangelho de João, já vemos caracterizada a preferência pela abordagem do aspecto religioso para tratar do tema paz.

No segundo parágrafo o editorialista escreve: “todos nós, normalmente, buscamos a paz. Mas a buscamos de conformidade com os nossos mais variados interesses, nem sempre caracterizados pelas nobres virtudes”. Percebemos nesse trecho que o uso da primeira pessoa do plural tem a intenção de aproximar e colocar em um mesmo patamar enunciador e enunciatário. Ou seja, na esfera daqueles que buscam a paz, mas não a buscam da forma que deveriam. Sabendo-se que, em se tratando de ethos, o que se pensa é a imagem do enunciador, este legitima seu dizer por essa imagem de si, construída no discurso. Sabe-se ainda que essa imagem só pode ser detectada numa totalidade. No caso aqui, para o tipo de análise escolhido, consideramos como totalidade as varias pistas linguísticas e discursivas deixadas pelo enunciador num mesmo editorial. No último parágrafo encontramos o trecho: “e é em O livro dos espíritos que aprendemos que a Lei de Deus está escrita em nossa consciência”. Novamente através do uso da primeira pessoa do plural, vemos ser retomado aquele “nós” que se dirige a um “vocês”, que, pelo recurso do “nosso”, aproximam-se, na tentativa de colimar para uma mesma direção, Jesus e Kardec como referenciais. Pois se o editorial começa com uma citação do Evangelho, termina com a citação de uma questão de O livro dos espíritos, de Allan Kardec. Com isso, baseando-se em obras e autores consagrados para aquela formação discursiva, tenta-se conseguir a adesão dos sujeitos, já que a imagem que se cria dos mesmos é de espíritas cristãos (pathos), criando-se, também, um ethos correspondente, que a revista busca validar.

No segundo editorial aqui analisado, o do número 2.190, o tema abordado é: Viver: um direito de todos. Neste editorial, do ponto de vista doutrinário – ideologia que é desenvolvida –, o Espiritismo é colocado como uma continuação das revelações trazidas por Moisés e por Jesus. Afirmando-se que a Doutrina Espírita, a exemplo de Jesus, “ratifica” e “amplia” a compreensão do mandamento “não matarás”, revelado a Moisés. Essa postura tenta validar o conceito de que o Espiritismo é a Terceira Revelação. O editorialista, assim, reafirmando um dos princípios basilares do Espiritismo, atende à expectativa dos leitores, que em sua maioria são espíritas e compactuam com essa crença. Pelo menos dentro do pathos criado, ou seja, a imagem criada dos enunciatários.

O editorialista remete-se à reencarnação como “o eixo fundamental” para o “enriquecer-se de experiências sublimes na sua senda evolutiva”. A partir desse principio da religião espírita, ele destaca o valor e o dever de “proteger e dignificar a vida do ser humano em qualquer fase de sua existência”, colocando entre parênteses a “concepção, zigoto, embrião, feto, recém-nascido, criança, jovem, adulto ou idoso”. Mesmo não fazendo uma referência explícita a questão do aborto, podemos ver que da ilustração da capa aos posicionamentos do editorial, a posição da revista, a exemplo da própria doutrina, é de ser contrária. Neste editorial o que nos chamou a atenção foi o apagamento das pessoas. Nele não há indício do enunciador ou do coenunciador, nem de outros embreantes. O que segundo Maingueneau, “estabelece uma ruptura com a situação de enunciação” (2011: 130), e “mostra um ethos de mármore, impecável, como se fosse um poema da arte pela arte, em que o enunciado, denegando sua própria situação de enunciação, pretende mostrar que não precisa dos homens” (2011: 132). Ou seja, é como se esse posicionamento da doutrina (contrária ao aborto) independesse do que pensam editorialista e leitor, sendo de certa forma inquestionável. Acreditamos que por isso o editorial é fundamentado em Moisés, Jesus e na doutrina espírita, por meio da citação da questão 880 de O livro dos espíritos. Ou seja, “[...] o apagamento do enunciador não impede que se caracterize a fonte enunciativa em termos de ethos de um ‘fiador’” (MAINGUENEAU, 2008d, p.69).

No último editorial aqui analisado, o do número 2.192, cujo tema abordado é O perdão das ofensas, o editorialista se expressa na primeira pessoa do plural, trazendo as proposições dos livros de Allan Kardec e do Evangelho para fundamentar e validar a sua fala. Ele constrói a imagem do leitor (pathos) espírita cristão, pois para atender a esse leitor, a abordagem do tema, a exemplo das anteriores, continua levando em consideração apenas o aspecto religioso do Espiritismo, visto que os temas escolhidos e a fundamentação para os mesmos sempre se pautam no Evangelho, juntamente com as obras de Allan Kardec, com uma preferência pelo livro O evangelho segundo o espiritismo, que é a obra que aborda o aspecto religioso da doutrina. Apresentando como “maior exemplo de perdão que o ser humano conhece [...] Jesus no Calvário. Humilhado, ferido, agredido injustamente”, leva-nos a identificar o ethos do espírita cristão na figura de uma pessoa que tudo suporta e tudo perdoa. Muito próximo do ethos que a revista tenta validar a cada editorial, ou seja, o ethos do espiritismo cristão. E isso corrobora para distinguir, ainda mais, o espiritismo brasileiro do espiritismo em outros países, conforme escreve Marion Aubreé e François Laplantine:

O primeiro ponto, que é de longe o mais importante, refere-se à dimensão fundamentalmente religiosa do espiritismo brasileiro que, guiado pelo anjo Ismael, pretende realizar na íntegra o “programa evangélico de Jesus Cristo”. A construção doutrinal elaborada por Kardec, que alia a ciência, a filosofia e a religião, é reinterpretada no Brasil em termos de “verdadeira obra cristã” em cujo “estandarte” estão inscritas estas palavras: “Deus, Cristo e Caridade”. Tomando distância em relação a tradição francesa em que se originou (Flammarion afirmava que “o espiritismo será científico ou não será”), o espiritismo brasileiro apresenta-se como uma religião, a religião da “fé racional”, primeira religião na qual se pretende explicar o indivíduo, o universo e o social em termos de ondas e de elétrons e simultaneamente religião que tem por missão propagar o Evangelho, a partir do Brasil, aos quatro cantos do mundo (2009, p. 212).

Nesse contexto, podemos subentender que o discurso dos editoriais da revista Reformador materializa a ideologia particular da FEB sobre o Espiritismo. Para um leitor também idealizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nossa leitura da constituição do ethos nos três editoriais da revista Reformador nos conduziu às seguintes considerações: o autor dos editoriais, como era de esperar, empenha-se em construir uma imagem de si mesmo digna de crédito, isto é, ele procura se fundamentar em autores e livros consagrados dentro do próprio Espiritismo, de tal forma que o seu interlocutor (leitor) fique seguro de que o que ele diz corresponde ao que ele pensa, ou seja, que eles seguem uma mesma linha dentro da própria doutrina.

É necessário, ainda, tecer considerações a respeito da neutralidade. Uma postura totalmente neutra, imparcial, é praticamente impossível, visto que ao emitir a sua opinião, o editorialista deixa transparecer as suas emoções e anseios, a sua visão doutrinária e ideológica. Podemos ainda considerar que é quase que totalmente impossível que o enunciador mostre-se comprometido com um ponto de vista e seja neutro ao mesmo tempo.

No caso do editorialista do Reformador, a análise do seu discurso revela, presumimos, a criação do ethos em função do pathos, ou seja, o ethos espírita cristão é criado para atender aos anseios de um leitor que se imagina também tender para essa qualificação. Cremos, contudo, que a revista não queira apenas atender a esses leitores, mas que seja essa a sua verdadeira característica, já que, antes mesmo do leitor chegar ao editorial, já se depara no expediente da revista com aquilo que poderíamos chamar de ethos dito, ou seja, a afirmativa: revista de Espiritismo Cristão. Para validar esse ethos os temas e os autores a fundamentar os editoriais são cuidadosamente escolhidos. Pois, para construir uma imagem positiva de si mesmo, o seu ethos, o editorialista procura, mesmo que de forma implícita, influenciar o seu interlocutor/leitor, sobretudo ao tratar os temas que lhe são, ao editorialista, relevantes.

Pudemos, por exemplo, constatar em nossa análise a preferência, por parte da revista, pelo aspecto religioso da doutrina. Mesmo que o Espiritismo, nas palavras do seu codificador (organizador), conforme já foi citado, tenha sido conceituado como uma doutrina tríplice, isto é, ao mesmo tempo ciência, filosofia e religião. Não foi o nosso interesse apurar se isso é positivo ou negativo. Apenas nos motivaram as especificidades do discurso religioso espírita, a partir do conceito de ethos discursivo. E nessa perspectiva concordamos com Gonçalves quando ela diz:

Para a Análise do discurso, o que interessa não é procurar descobrir se a religião é falsa ou verdadeira, mas compreender o discurso religioso enquanto um produtor de verdades, uma vez que o que existe não é a verdade, mas uma vontade de verdade. Como ele emergiu? De que modo suas verdades foram construídas? Como elas circulam com um valor de verdades? Como essas verdades constroem o sujeito religioso? São estas, portanto, as questões centrais que movem nosso interesse acerca da religião, enquanto campo de observação científica (2011, p. 23).

Para reforçar e concluir as nossas considerações evocamos as palavras de Maingueneau, no livro Gênese dos discursos: “pode-se lamentar que o discurso religioso continue a ser o parente pobre da análise do discurso, ao mesmo tempo em que o fato religioso está particularmente presente no mundo contemporâneo” (2008c, p. 13). Foi para talvez arrefecer esse lamento, que aqui se objetivou constituir elementos para as primeiras reflexões sobre essa desafiadora questão que é a análise discursiva de textos da mídia espírita.

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do Ethos. São Paulo: Contexto, 2008.

AUBÉE, Marion; LAPLANTINE, François. A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil. Maceió: EDUFAL, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2ª. ed., São Paulo: Contexto, 2008.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. 2ª. ed., São Paulo: Contexto, 2010.

FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008.

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. Conheça a FEB – História – Revista Reformador. <http://www.febnet.org.br/site/index.php> Acesso em: 20 de Fev. de 2012.

GONÇALVES, Iracilda Cavalcante de Freitas. Na discursivização de nosso lar: as verdades do espiritismo. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2011.

KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 25ª. ed., São Paulo: LAKE, 1998.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 6ª. ed., São Paulo: Cortez Editora, 2011.

_____. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008a.

_____. A propósito do Ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; Salgado, Luciana. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008b.

_____. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008c.

_____. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008d.

_____. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2009.

_____. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 9ª. ed., Campinas, SP: Pontes Editores, 2010.

S. JÚNIOR, Alcides Mendes. Pa(lavras) em terra: forja e coifa de uma região. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2006.

STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à brasileira. São Paulo: Edusp. Curitiba: Orion, 2003.



[1] Professor do Instituto Superior de Educação de Pesqueira – PE (ISEP)

j.antonio.ferreira@hotmail.com

[2] Plural de ethos.