Novo episódio do Podcast Papo Filosófico

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Compreender, eis a questão!



Aprender a ler não é só uma das maiores experiências da vida escolar. É uma vivência única para todo ser humano. Ao dominar a leitura abrimos a possibilidade de adquirir conhecimentos, desenvolver raciocínios, participar ativamente da vida social, alargar a visão de mundo, do outro e de si mesmo, como disse Carlos Drummond de Andrade no poema Infância. "E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
Faz mais de 500 anos que o gráfico alemão Johannes Guttenberg inventou a prensa manual e deu início a uma das maiores revoluções da humanidade, o acesso em massa à leitura. Ele criou a técnica da impressão provavelmente em 1453, mas só completou seu primeiro livro, a Bíblia, em 1455. No entanto, até hoje ler é um problema para muitas pessoas. Cabe à escola, em meio a tantas mudanças tecnológicas e sociais, estimular a leitura, melhorar as estratégias, principalmente de compreensão (um dos principais problemas de aprendizagem, segundo os exames de avaliação nacionais e internacionais) e oferecer muitos e variados textos. Dos caminhos a seguir, dois favorecem a intimidade dos alunos com o texto: ensinar a estabelecer previsão e inferência, estratégias que são invocadas na prática da leitura, logo no primeiro contato com o texto, e que devem ser "provocadas" conscientemente pelo professor na prática de leitura.

Se usadas com clareza, previsão e inferência exigem que o leitor acione conhecimentos prévios, como ideias, hipóteses, visão de mundo e de linguagem sobre o assunto. "A leitura é uma atividade de procura do passado de lembranças e conhecimentos do leitor. O que orienta o ato de ler é a direção, a elaboração do pensamento e sua imagem de mundo", diz Ângela Kleiman, professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. 


Ler é interagir 

O ato de ler não se dá linearmente, como um processo contínuo, tranqüilo e sem interrupções. Ao contrário. É uma operação mental complexa marcada por tensões, porque envolve ativamente a pessoa. "Ler não é fácil, exige esforço mental e físico. E, como tudo que dá trabalho, muitas vezes tendemos a abandonar", explica Heloísa Cerri Ramos, consultora de Língua Portuguesa. "Por isso, o esforço dos professores deve ser incansável." 

Quem lê está em contato com quem escreveu o texto, com as idéias de uma ou de várias pessoas. E recorre às próprias idéias para conferir o que conhece sobre um assunto, para criticar ou concordar com o autor. Portanto, a leitura só desperta interesse quando interage com o leitor, quando faz sentido e traz conceitos que se articulam com as informações que já se tem. 

Na sala de aula 
Uma atividade de leitura deve ser bem planejada. O professor deve pesquisar textos e se preocupar em: 

• Ter um objetivo bem definido para desenvolver com os estudantes. 

• Escolher textos à altura do repertório dos alunos para que o diálogo com a leitura seja produtivo, mas também outros de leitura complexa, que mediados pelo professor permitam tornar o diálogo possível. 

• Ativar o conhecimento prévio dos alunos, ensinando a fazer perguntas sobre o texto, para aumentar as possibilidades de compreensão do texto. 

• Fazer hipóteses e previsões sobre o texto a ser lido. E ensinar a estabelecer previsões, baseando-se no gênero, no título, no subtítulo, nas ilustrações etc. 

• Favorecer a participação do aluno por meio de perguntas e situações em que ele tenha de fazer uso de estratégias que lhe facilitem a compreensão do texto. 

• Articular diferentes situações de leitura — silenciosa, coletiva, oral, individual e compartilhada — e encontrar os textos mais adequados para alcançar os objetivos. 

• Estimular a turma a sempre trocar idéias e discutir o que foi lido. 

• Propor trabalhos em que os alunos precisem ler para seguir instruções, revisar a própria escrita, praticar a leitura em voz alta e memorizar. 

Fonte: Heloisa Cerri Ramos, professora e consultora de Língua Portuguesa 
Os especialistas falam 

"Que ninguém se iluda: só a leitura intensa permite conhecer os múltiplos recursos da língua e usá-los com eficiência, sem a decoreba gramatiqueira" Marcos Bagno, escritor, tradutor e professor de Lingüística da Universidade de Brasília

"Ler em si não é viver. Ler é conseguir o devido combustível de idéias para viver em sociedade. E essa conquista passa necessariamente pela objetividade do ensino e pela qualidade da escola. Isso não é uma inferência, mas um fato real ou, no mínimo, uma previsão mais do que acertada" Ezequiel Theodoro da Silva, professor da Universidade do Contestado, SC, e da Universidade Estadual de Campinas, SP

"O domínio das estratégias de leitura decorre de uma prática viva do ato de ler, de um lado vivenciando os diferentes modos de ler existentes nas práticas sociais; de outro, respondendo aos diferentes propósitos de quem lê" 
Maria José Nóbrega, mestra em Língua Portuguesa e assessora em programas de desenvolvimento profissional
Dialogar com o texto 

Durante a leitura, captamos informações pela aparência (tamanho do texto ou livro), a existência ou não de fotos e ilustrações, o tamanho e sua disposição no papel. Sem falar, é claro, no título do texto e no que já sabemos sobre o autor. É o primeiro contato que faz o leitor imaginar o assunto. Quer um exemplo prático? Leia o texto abaixo:

"A liberação de neurotransmissores é um processo probabilístico. Tal liberação, chamada de exocitose, ocorreria com uma probabilidade relativamente baixa. De cada cinco impulsos nervosos chegando à vesícula sináptica de células piramidais do neocórtex, apenas um liberaria o neurotransmissor". 
Deu para entender alguma coisa? Quem não conhece neurociência dificilmente vai se interessar pelo assunto, porque não conseguirá estabelecer um diálogo com o texto. Ainda assim é possível perceber algumas características: não se trata de uma história, não há ação, o texto é informativo. Ou seja, nenhum texto passa em branco para quem é letrado. Isso é inferência, uma estratégia que leva em conta os elementos (sejam eles fotos, tabelas, gráficos, desenhos, a divisão dos parágrafos do texto, o significado de uma palavra) que possibilitam tirar conclusões a partir de dados avulsos e, por isso, incompletos.

Quanto menos conhecimento o leitor tem de um assunto, mais ele se agarra à inferência. É fácil inferir que abaixo temos um poema, pois ele está organizado em estrofes.

Veja agora como é diferente a questão do diálogo com o texto quando o texto faz parte de nosso repertório de conhecimento.

Teoria 

Para entender o que se lê, é preciso: 

• Conhecer a língua.

• Ter um objetivo.

• Ter experiências ou conhecimentos prévios sobre o assunto do texto.


O BICHO 
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem. 

O autor é Manuel Bandeira, poeta do modernismo (leia mais sobre o escritor e esse movimento artístico do século XX no quadro abaixo). Mesmo quem não conhece nada sobre ele ou o contexto em que a poesia foi produzida consegue entender a mensagem, pois o poeta utiliza ferramentas da língua para expressar sua visão de mundo. Antes de ler O Bicho, quem tem informações sobre Manuel Bandeira pode antecipar o estilo ou o tema. Ou seja, um conhecimento do assunto, do autor, antecipa a expectativa da leitura. Isso é previsão. Quanto maior o repertório de uma pessoa, quanto mais experiências de leitura tiver uma pessoa, mais previsões ela é capaz de fazer. Quanto mais sabe sobre o mundo e a linguagem, melhor ela lê. Por isso, seu papel é apresentar vários tipos de texto e imagem.

Abaixo os puristas 
O modernismo foi um movimento literário e artístico nascido na Europa e que se espalhou por vários países do mundo. Chegou ao Brasil na década de 1910. Na literatura, teve início em 1922 com a Semana de Arte Moderna, que contou com a participação de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida e muitos outros, no Teatro Municipal de São Paulo. Os modernistas ridicularizavam o parnasianismo, movimento artístico mais importante da época (que cultivava uma poesia de notável apuro de forma), e apresentaram uma renovação na linguagem e nos formatos, marcando a ruptura definitiva com a arte tradicional. O modernismo privilegiava os temas populares brasileiros, quase sempre com humor e irreverência. As regras gramaticais nem sempre eram respeitadas, sobretudo nos textos sem pontuação e nos versos descontínuos, o que era abominado pelo parnasiano Olavo Bilac.

Paixão pela vida 
Manuel Bandeira (1886-1968) é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira. Estreou na poesia em 1917 com o livro A Cinza das Horas e, na Semana de Arte Moderna, seu poema Os Sapos foi declamado, virando um dos marcos do movimento. Certa vez definiu sua obra como um "gosto humilde de tristeza", pois seus textos biográficos são marcados pela tragédia e a tuberculose, a melancolia e a paixão pela vida. Tratou de temas como o amor, a morte e o cotidiano, aliando freqüentemente o humor e a ironia amarga. Manuel Bandeira foi também professor de Literatura e membro da Academia Brasileira de Letras.

Roberta Bencini

Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/compreender-eis-questao-423576.shtml



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

LEITURA E COMPREENSÃO DE TEXTO FALADO E ESCRITO COMO ATO INDIVIDUAL DE UMA PRÁTICA SOCIAL



Luiz Antônio Marcuschi
Leitura: perspectivas interdisciplinares)

1. NOSSO USO DA LÍNGUA
Desenvolvemos quatro habilidades no uso da língua: falar e escrever, ouvir e ler.

Não se verifica uma distribuição eqüitativa do tempo no desempenho dessas atividades.

Geralmente os exercícios da leitura e escrita são menores que as duas outras habilidades – falar e ouvir.

O panorama brasileiro sugere que a distribuição das condições e chances de acesso às quatro habilidades é desproporcional.

Entretanto, falar e escrever são, hoje, duas práticas sociais básicas em todas as sociedades letradas, independentemente do tempo médio dispendido com elas.

Vejamos algumas propostas de reflexão sobre a leitura e compreensão do texto oral como o do escrito elaboradas pelo autor:

1)            busca desmistificar a dicotomia radical entre oralidade x escrita, já que a escrita tem traços da oralidade;
2)            a escrita não tem um valor intrínseco e autônomo, distinguindo os indivíduos entre os incapazes de pensar logicamente (iletrados) e os capazes de pensar logicamente (letrados);
3)            mostrar alguns mecanismos e fatores envolvidos na atividade de compreensão do texto.

2. OUVIR E LER COMO ATIVIDADES CRIATIVAS
Se, por um lado, falar e escrever são duas formas de manifestação do uso produtivo e criativo da língua; por outro, ouvir e ler não são simples manifestações de um uso reprodutivo e passivo da língua.

Falar e escrever, ouvir e ler são ações igualmente e a seu modo ativas, produtivas e criativas.

Também é importante dizer que considerar os processos de produção e recepção de texto como essencialmente independentes é mal compreender o funcionamento comunicativo da língua.

A produção e recepção de textos também não é um processo simétrico.

Outro detalhe: o processo de leitura e compreensão de textos orais ou escritos é diferente.

Não podemos ignorar a leitura dos textos orais. Um exemplo citado pelo autor é o do texto oral do professor.

Chaudron e Richards (1986) levantaram uma hipótese.

Eles falam da existência de micromarcadores e macromarcadores.
a)            micro – “bem”, “olha”, “certo?”, “né” – não são típicos de um texto formal e dão a impressão de desorganização discursiva;
b)            macro – “como vimos acima”, “passando para o próximo ponto”, “em primeiro lugar” etc – são mais próprios para um evento comunicativo tipo aula. Eles têm a propriedade de orientar, posicionar e organizar porções discursivas;
c)            ausência total de marcadores – é pouco própria do texto oral e pouco própria para ser ouvida.

Desde criança iniciamos a interação lingüística através da oralidade. Mas há várias situações comunicacionais onde usamos a oralidade. Cada situação exigirá aptidão e competência específicas.

A passagem para uma outra modalidade, a escrita, será ainda mais penosa.


3. RELAÇÕES ENTRE A FALA E A ESCRITA
Há muitas diferenças entre o texto falado e o texto escrito. Vejamos:
a)            fala tende a ser plurissistêmica, com fatores organizacionais verbais e não-verbais; escrita depende somente do canal verbal;
b)            fala envolve interação mais direta, com troca de falantes, pouca fixidez temática, maior espontaneidade; escrita não tem troca de falantes, tempo de produção não costuma coincidir com o tempo de recepção, apresenta um caráter mais público, maior fixidez temática etc;
c)            fala exibe maior redundância, repetições, autocorreções, marcadores ilucotutórios etc; escrita tem uma outra organização sintática, semântica e pragmática.

Baseado nessas diferenças é próprio dizer que a escrita é descontextualizada; a fala é contextualizada.

Isto não significa, porém, que a escrita não seja contextualizada. Quer dizer que a leitura do texto escrito requer um outro tipo de posicionamento do leitor.

Por isso, Simons e Murphy vão falar em dependência situacional (para o texto oral) e dependência contextual (para o texto escrito).

Leitores pouco fluentes terão maior dificuldade de compreensão pela ausência de dicas contextuais exibidas pela fala. No texto, terão de encontrar essas informações no interior do texto escrito, buscando todo o sistema referencial.

Estes autores dirão que as pessoas que usam uma linguagem marcadamente de dependência situacional terão maior dificuldade na leitura do texto escrito.

Por outro lado, o domínio da escrita e a consciência fonológica da língua passam a ter um efeito sobre a própria fala.


4. O CASO DE UM TEXTO CONVERSACIONAL ESCRITO
Trata-se de um exemplo presente na página 44.

Quando nos defrontamos com texto destes, temos que desenvolver um esforço maior do que na leitura desse mesmo texto num outro formato – crônica, por exemplo.

Compreendemos um texto conversacional, muitas vezes, por inferência.

É fundamental entender que um texto não tem inscrito em si todos os sentidos objetivamente; o leitor deve ser ativo, produtivo e criativo em sua ação individual de ler.

5. O CASO DE UM TEXTO SEM O SEU CONTEXTO
a) A compreensão não se dá como fruto da simples apreensão do significado literal das palavras e sentenças;

b) Compreender uma sentença ou um texto exige mais do que situá-los em seus contextos de ocorrência. Exige também uma contextualização cognitiva dependente da própria organização dos conhecimentos e experiências pessoais.

6. O CASO DE UM TEXTO COM ENDEREÇO CERTO MAS NÃO EXPRESSO
Alguns textos são produzidos para dizer algo a alguém, mas de forma indireta.

Há elogios que são feitos para uma pessoa visando confrontar outra (ex: p.47-48).

Para se efetivar leitura desses textos é preciso recriar o que é omitido.

A comunicação humana é amplamente baseada no que é omitido num discurso.

As pessoas raramente especificam tudo o que pretendem comunicar. Em geral, especificam apenas o suficiente para guiar o leitor ou ouvinte, que deve usar seus conhecimentos e crenças para preencher os vazios.

7. O CASO DE UM TEXTO CONVERSACIONAL
Por que não nos indagamos se entendemos o que nosso companheiro de diálogo acablou de dizer? Porque interagir face a face é produzir um texto em co-autoria (feedback).

A compreensão de textos orais exige-se muita capacidade inferencial (raciocínio lógico), o que não parece faltar às pessoas.

8. ALGUMAS CONDIÇÕES PARA A COMPREENSÃO DE TEXTO
Temos sete condições. Vejamos na página 51.

O que podemos entender a partir dessas sete condições?

A compreensão não será fruto da simples compreensão dos significados literais. Não é uma paráfrase da entrada original...

Compreender um texto não é memorizar. Compreender é perceber relevâncias e estabelecer relações entre várias coisas.

Compreensão não é um jogo de adivinhações. É um processo complexo – envolve a percepção dos elementos visuais, predição de hipóteses, confrontação etc.

Cada leitor/ouvinte tem suas formas de perceber e selecionar relevâncias; o autor não pode pretender controlar completamente estas atividades.

Com base nisso, podemos identificar alguns fatores básicos que afetam a produção e compreensão de textos. Entre eles, vejamos os que foram relacionados pelo autor na página 53:

Uma coisa é interessante: não se pode supor um leitor ou ouvinte com ponto cognitivo zero.

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Dascal elaborou a “teoria da cebola semântica”. A significação de um enunciado compor-se-ia de várias camadas superpostas:
a)            central (núcleo): o conteúdo proposicional:
b)            periférica: fatores que interferem na conversa;
c)            intermediárias: crenças individuais, conhecimentos de mundo etc.

A boa ou má compreensão dependeria da interação entre as várias camadas de significação.

O importante desse modelo teórico é que ele sugere alguns aspectos que podem interferir na compreensão.

O esforço comunicativo se dará como um contrato entre os interectatantes, no qual são providenciados modelos textuais e cognitivos que lhes permitem a construção de sentidos compatíveis e aceitáveis.

A memória controla e fundamenta todo o processo de compreensão. Uma informação nova não faz sentido se não se situar em algum ponto preexistente.

Não se sabe como os conhecimentos são organizados na memória, mas quando um leitor/ouvinte entra em contato com um texto escrito ou oral, opera-se um confronto de duas estruturas de conhecimento (a da memória e o “novo”).