Novo episódio do Podcast Papo Filosófico

terça-feira, 23 de agosto de 2011

OSCAR FLORES, UM JOVEM ATORMENTADO: ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DOS ETHE DE UM PERSONAGEM



Artigo escrito e apresentado por José Antonio Ferreira da Silva no Grupo de Trabalho 12 - INTERFACES ENTRE LÍNGUA E LITERATURA EM SITUAÇÃO DE ENSINO do VII Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna e Estrangeira e de Literatura. UFCG – Universidade Federal de Campina Grande.

OSCAR FLORES, UM JOVEM ATORMENTADO: ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DOS ETHE DE UM PERSONAGEM

S. Ferreira, José Antonio
Licenciado em Letras e Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa,pelo Instituto Superior de Educação de Pesqueira – PE (ISEP)
Professor de “Análise e Produção do Texto Acadêmico” e de “Português Instrumental”, no ISEP.
Instituto Superior de Educação de Pesqueira (ISEP)
j.antonio.ferreira@hotmail.com

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo geral relatar como é constituído o ethos pré-discursivo e discursivo do personagem Oscar Flores no conto “A mais estranha moléstia”, de João do Rio, utilizando os conceitos do ethos na Análise do Discurso. Os objetivos específicos são identificar como é o cenário enunciativo, o tom, o caráter e a corporalidade apresentados no conto em torno deste personagem. A problemática apontada neste estudo é a de como este personagem é “corporalizado” numa imagem masculina no referido conto de João do Rio. Utilizou-se como metodologia a Análise do Discurso de Maingueneau (2005; 2008 a; 2008 b; 2009) para verificar como é a construção dos ethe do personagem presentes no conto.
PALAVRAS-CHAVES: Conto. João do Rio. Ethos. Análise do Discurso.

1 INTRODUÇÃO

O objeto de nossa análise é o conto, que é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho). Entre suas principais características estão: a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total. O conto precisa causar um efeito singular no leitor, muita excitação e emotividade. “No conto tudo importa: cada palavra é uma pista. Em uma descrição, informações valiosas; cada adjetivo é insubstituível; cada vírgula, cada ponto, cada espaço – tudo está cheio de significado.” (CEREJA e COCHAR, 2009: 289).
A mais estranha moléstia é um conto sobre um jovem atormentado por um olfato anormalmente aguçado. Escrito por João do Rio, pseudônimo literário de Paulo Barreto (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto), jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na mesma cidade, em 23 de junho de 1921. Notabilizou-se como o primeiro homem da imprensa brasileira a ter o senso da reportagem moderna. Como jornalista, foi um renovador histórico da imprensa brasileira, fundindo a reportagem e a crônica num novo gênero personalíssimo. Consagrou-se, também, literariamente. Como cidadão e artista, foi o arquétipo incomparável em sua época. Mulato, obeso e homossexual, ele sentiu na pele o preconceito contra suas diferenças, sendo desprezado publicamente por várias personalidades, e até mesmo vítima de uma covarde agressão física, enquanto almoçava, por um grupo de nacionalistas. Mas, ainda assim, ele convivia com a classe alta da época, e chegou até a ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras.
O texto que iremos analisar faz parte do livro Dentro da Noite, que foi lançado em 1911. Reúne onze contos, já publicados anteriormente em jornais, e outros sete inéditos. Trata-se de uma coletânea de relatos urbanos sensuais, sórdidos e fúnebres, que mostram um mundo de glamour que serve para contrastar com o sórdido, o feio e o sombrio existentes na cidade e no interior do próprio homem. Essa obra foi descrita por João Carlos Rodrigues, no prefácio da edição consultada, como “a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada na literatura brasileira”. Seus contos tratam de diversas deformações sensoriais, inclusive sadomasoquistas, e seu clima opressivo e apavorante é cercado de sensualidade e elementos góticos. Como se percebe, essa coletânea é muito mais que uma simples compilação de costumes de uma época.
Por toda essa riqueza que representa o texto de João do Rio, temos com este artigo o objetivo de analisar e refletir sobre os esquemas de composição dos ethe (discursivo e pré-discursivo) utilizados pelo autor na composição do personagem Oscar Flores, no conto citado. Buscamos identificar ainda como é o cenário enunciativo: o tom, o caráter e a corporalidade constituídos a partir desse personagem, para, assim, tentarmos depreender a imagem masculina (corporalidade) construída pelo autor em A mais estranha moléstia. O arcabouço teórico desta análise, que se detém no enfoque do ethos discursivo, está ancorado em Maigueneau (2005; 2008a; 2008b; 2009).

2 DESENVOLVIMENTO

Com a nossa análise temos a intenção de observar as propriedades, as estratégias, os meios e efeitos linguísticos e discursivos utilizados pelo autor, já que:

(...) analisar textos é procurar descobrir, entre outros pontos, seu esquema de composição; sua orientação temática, seu propósito comunicativo; é procurar identificar suas partes constituintes; as funções pretendidas para cada uma delas, as relações que guardam entre si e com elementos da situação, os efeitos de sentido decorrentes de escolhas lexicais e de recursos sintáticos. É procurar descobrir o conjunto de suas regularidades, daquilo que costuma ocorrer na sua produção e circulação, apesar da imensa diversidade de gêneros, propósitos, formatos, suportes em que eles podem acontecer. (ANTUNES, 2010: 49)

Para isso faremos uma verdadeira decomposição para melhor entendermos elementos básicos da estrutura do texto, tais como: fatos, personagens, tempo, espaço e narrador. Paralelo a esse processo iremos buscar a identificação do ethos presente no conto, principalmente em torno do personagem Oscar Flores. Assim, o enfoque dos elementos discursivos faz-se de extrema importância para se atingir esse objetivo, visto que as escolhas lexicais realizadas pelo escritor se materializam através das marcas lingüísticas, e são responsáveis pela efetivação do ethos. Conceito que explicitamos abaixo.

Ethos – Termo emprestado da retórica antiga, o ethos (em grego ηθοζ, personagem) designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário. Essa noção foi retomada em ciências da linguagem e, principalmente, em análise do discurso, em que se refere às modalidades verbais da apresentação de si na interação verbal. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008: 220)

Nessa perspectiva o ethos está ligado à palavra e não ao indivíduo real, é o sujeito da enunciação. Na Análise do Discurso temos como principal expoente dos estudos sobre o ethos, Maingueneau. Para ele, esse conceito nos permite uma visão mais geral da posição do sujeito em seu discurso. Ademais, o ethos se estende além dos enunciados orais, conforme podemos ler a seguir.

De fato, mesmo que o co-enunciador não saiba nada previamente sobre o caráter do enunciador, o simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos.
Minha primeira deformação (alguns dirão ‘traição’) do ethos consistiu em reformulá-lo em um quadro da análise do discurso que, longe de reservá-lo à eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, propõe que qualquer discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de um tom que indica quem o disse: o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral: pode-se falar do “tom” de um livro. (MAINGUENEAU, 2008 a: 71-72)

Podemos entender então que o discurso escrito apresenta uma vocalidade específica, pela qual podemos construir o ethos. Ele se apresenta por meio de três características: tom, caráter e corporalidade. O Tom equivale ao discurso contido na enunciação; o caráter, entendemos como sendo o conjunto dos traços psicológicos, e a corporalidade, compreendemos como as características físicas e o modo de agir no espaço social (MAINGUENEAU, 2009).
Podemos dizer assim que em um discurso o ethos resulta da interação de vários fatores: do ethos pré-discursivo, do ethos discursivo (ethos mostrado) e dos fragmentos do texto em que o enunciador lembra a própria enunciação (ethos dito), diretamente (“é um amigo que vos fala”) ou indiretamente, por meio de metáforas ou alusões a cenas de outras falas (MAINGUENEAU, 2009: 270). Pode-se fazer a distinção entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo da seguinte forma: o ethos pré-discursivo seria a imagem que o co-enunciador faz do enunciador, antes mesmo que este último tome a palavra para si.
Passemos à análise do conto pelo enredo. Numa estrutura comum à maioria dos contos de João do Rio, um personagem conta algo ao narrador. No caso aqui o relato do diálogo entre dois amigos, o narrador e Oscar Flores, esse um jovem atormentado por uma moléstia singular. O olfato desenvolvido a tal ponto que lhe modifica a vida e a forma como ele lida com o mundo em volta. A narrativa possibilita que identifiquemos que o narrador se apresenta em primeira pessoa, e é também personagem secundário. Vejamos o que dizem Platão e Fiorin sobre esse tipo de narrador:

Quando o narrador é um personagem secundário, observa de dentro os acontecimentos. Afinal, viveu os fatos relatados. O narrador conta o que viu ou ouviu e até mesmo se serve de cartas ou documentos que obteve. Não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros. Pode apenas inferir, lançar hipóteses. O narrador pode ou não comentar os acontecimentos. (2007: 139)

Essas são características comuns do narrador em João do Rio: perscrutar a emoção alheia e gozar com ela. Para ele o narrador é um elemento que se torna essencial por ser um sujeito único, com uma oportunidade única de ouvir algo e ser a voz única a transmitir para alguém o que lhe foi confidenciado. Deparamo-nos com sua curiosidade em várias passagens, como, por exemplo, nesta: “– Então, Oscar, onde estás? É por isso que te caluniam...” (RIO, 2002:178).
Observemos agora o espaço que cria o autor. Podemos entender que “(...). Na narrativa, o espaço é o lugar onde se passa a ação. Articula-se com as personagens, podendo influenciar suas atitudes ou sofrer transformações provocadas por elas.” (CEREJA e COCHAR, 2009: 289). Dentro dessa perspectiva vale considerar a existência dos espaços físico e social. Esse relativo aos perfis socioeconômicos, morais e psicológicos que dizem respeito às personagens; aquele é o lugar onde acontecem os fatos que os envolvem. Porém, em se tratando de literatura, a visão do espaço transcende o puramente físico e social, passando pelo imaginário e simbólico até uma dimensão paralela. Conforme nos diz S. Júnior (2006: 33)

A literatura traga-nos a espaço estranho, à Quarta dimensão de um universo inexistente. São tempo e espaço paralelos. O mundo construído sendo outro e o nosso, num diálogo em que a imagem é marca que legitima a criação da existência inconcebível.

É o que vemos João do Rio fazer. Ele descreve muito bem os espaços físico e social, porém penetra também em uma dimensão mais etérea. Do ponto de vista físico o espaço é uma confeitaria, onde o narrador-personagem tem por hábito sentar-se com os olhos perdidos a contemplar os diversos movimentos da Avenida. Em relação ao social há uma rica descrição de ambientes que nos leva às características de uma época, pois somos transportados da dimensão espacial para a temporal. Vendo lugares e comportamentos comuns a um determinado momento histórico, sem esquecermo-nos do mundo glamoroso e metafórico que ele consegue descrever-nos, como em:

À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes de arlequins dos cinematógrafos, brasonaundo de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! Os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão mirionima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite de cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safirinas, espelhamentos jaldes de topázios, (...). (RIO, 2002: 177)

No trecho citado João do Rio nos dá a certeza de que “Os lugares são perenes, as paisagens são instantes. O Espaço é a junção de ambos.” (S. JÚNIOR, 2006: 16).
Sabendo-se que o tempo ou época em que se passa a história em um texto literário pode ser indicado por marcadores temporais, formas verbais, ou pela própria sequência de eventos da narrativa que façam alusões ao tempo (CEREJA e COCHAR, 2009), observamos que o autor já começa o conto tecendo referências, em paratexto, à Belle Époque, como “(...) o momento verde, momento do aperitivo outrora absinto (...)” (RIO, 2002: 176). E pela própria sequência de acontecimentos vemos a configuração do tempo na lembrança de um evento “há quatro anos” (RIO, 20: 188), ou então ao ver “serem oito horas” e na “Avenida, centenas de lâmpadas elétricas acendiam a sua grande extensão no clarão da luz” (RIO, 2002: 189).
Passemos a observar a caracterização dos personagens, sendo que não nos deteremos no narrador. Nossa ênfase maior será dada ao personagem Oscar Flores. Comecemos, pois, refletindo no que diz Garcia:

Na prosa de ficção, a caracterização das personagens – sobretudo as mais complexas – em geral se vai delineando gradativamente, ao longo de toda a narrativa, pela acumulação dos traços físicos e psicológicos, revelados em breves e sumárias ou longas e detalhadas descrições da sua aparência física, dos seus gestos, atitudes, comportamento, sentimentos e idéias. (2006: 249)

É fácil perceber-se que é isso que faz João do Rio em relação ao personagem citado, ele o vai caracterizando ao logo do conto, tanto através do narrador-personagem quanto pelas próprias falas de Oscar Flores. Acompanhemos algumas passagens que justificam essa observação, primeiro por parte do narrador (RIO, 2002): “delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual diziam horrores e que de resto parecia ter n’alma um fatigante segredo”, “E falavam tanto mal dele”, “com a sua palidez e as suas lindas mãos”, “Era encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado”, “rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante”, “ és belo”, “tens espírito”, “ nem a beleza nem o espírito conseguiram reduzir-te à atroz banalidade de ser totalmente feliz”, “teu desequilíbrio é de fato de uma psicologia muito sutil, muito trabalhada”. Podemos considerar que todos esses apontamentos e descrições realizados pelo narrador em torno do personagem, além do próprio tom que o autor imprime em seus contos, ou seja, “relatos de taras e esquisitices” já constituem o ethos pré-discursivo do personagem, visto que, mesmo o ethos estando ligado ao ato de enunciação, não se pode ignorar o fato dos leitores construírem representações do ethos antes mesmo das falas de Oscar Flores, visto que o mesmo entra no enredo na condição de um jovem atormentado por um “segredo” do qual ainda nada se sabe, mas do qual já se fala mal.
Acompanhemos o que Oscar Flores diz de si mesmo, o que podemos chamar de ethos discursivo (ethos dito), ou seja, fragmentos do texto em que o enunciador evoca a sua própria enunciação. Vejamos as seguintes passagens: “Mas não tenho segredos”, “Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa que ninguém sabe”, “eu sofro desde criança”, e ainda:

A minha moléstia, o meu desequilíbrio, o império de um único sentido no meu organismo e nesta sensibilidade caldeada numa ascendência de requintados, deu-me da vida íntima uma prévia noção incorpórea, deslocou-me para um mundo de fantasia exasperante, fez-me o lascivo da atmosfera, o gozador das essências esparsas, o detalhador do imponderável, o empolgado da miragem da vida. (RIO, 2002)

Esclarece ele: “O olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado do cheiro”, “Sou a vítima do cheiro”. Contudo, após vários esclarecimentos clama: “eu sou um sujeito muito razoável e muito refletido”, tentando mudar o ethos que fora criado para ele. Mas ainda é possível localizar outro tipo de ethos que o personagem cria: o ethos mostrado, ou aquele que está no domínio do não explícito, que só pode ser seguido através das pistas deixadas. Entre as pistas que o personagem deixa, destacamos as várias vezes em que o mesmo reconhece que luta contra a moléstia, que a estuda, mas que, acima de tudo, é uma vítima do próprio destino, quando demonstra, além de um profundo desequilíbrio, várias esquisitices. Porém “a distinção entre ethos dito e ethos mostrado se inscreve nas extremidades de uma linha contínua, pois é impossível definir uma fronteira nítida entre o ‘dito’ sugerido e o ‘mostrado’ (MAINGUENEAU, 2009: 270)”.
A fim de explicarmos a forma como interpretamos o ethos que se constituiu no conto para o personagem, citamos a seguir o esquema proposto por Maingueneau (2008 b):












Dentro dessa perspectiva apresentada por Maingueneau, vejamos como a concepção de ethos é “encarnada”, isto é, quais são as suas determinações físicas e psíquicas (MAINGUENEAU, 2005: 98), e também como é “corporalizada” a imagem masculina do personagem. Para isso é preciso relembrar que todo texto escrito tem uma vocalidade que possibilita uma caracterização do corpo do enunciador a um fiador que, por meio do tom, atesta o dito (MAINGUENEAU, 2009: 271). Em outras palavras, as características que constroem o ethos são avalizadas pelo fiador, isto é, pelo discurso social que faz parte da memória do leitor, e que na leitura é ativado para validar ou não aquele ethos que se encontra na obra e que é formado ou transformado pelo leitor durante a leitura.
Mesmo em se admitindo que a percepção do ethos é complexa, pois depende principalmente da sensibilidade do intérprete, que o constrói a partir das informações absorvidas, dentre outras, através da materialização lingüística, podemos identificar o ethos criado por meio do entendimento do processo de “corpolarização” do personagem forjado pelo autor, que começa já pelo tom impresso ao livro do qual faz parte o conto, ou seja, o de ser “a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada na literatura brasileira”. Isso faz com que o leitor já crie a expectativa de um personagem atormentado. Esse simulacro (estereótipo) vai se firmando pelos apontamentos do narrador, antes mesmo das primeiras falas de Oscar Flores, que já passa a ser visto pelo leitor como um jovem atormentado. Ao longo do conto o conjunto das características psicológicas, i.e., do caráter que vai sendo apresentado, reforça, pelas esquisitices narradas, a imagem do jovem desequilibrado, instável e com uma estranha moléstia, que até então vem sendo construída. Mesmo quando das falas do próprio personagem, que explicam que sua moléstia é uma hipersensibilidade olfativa, ele confessa também os desequilíbrios psicológicos e emocionais gerados pela enfermidade em questão. Mantendo-se, assim, o ethos e a imagem de um jovem atormentado.
No entanto, no que se refere à composição da corporalidade, i.e., a compleição física e a maneira de se vestir, o autor nos surpreende, pois contra a expectativa natural da manutenção da imagem negativa, ele apresenta-nos Oscar Flores como um belo espécime masculino. Com todos os atributos idealizados e desejados por e para o homem, quais sejam, ser bonito, rico e elegante. O autor chega a nos fazer crer que a moléstia apresentada pelo rapaz é apenas um capricho, “uma psicologia muito sutil”, quem sabe algo até normal. Finaliza dizendo que “talvez fosse na desvairada luxúria o grande sensual do ideal. E talvez não, talvez fosse um louco. Somos todos loucos mais ou menos”; deixando-nos a sensação de que para quem é rico, belo e bem vestido nada há de verdadeiramente anormal. É apenas o caso de um jovem atormentado. E quem não tem os seus tormentos...

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diferentemente do que ocorre na retórica tradicional, na concepção de Maingueneau o ethos não é visto como uma forma de persuadir, mas como parte da cena de enunciação. Para ele “(...) o ethos se mostra no ato de enunciação, mas não se diz no enunciado.” Sendo sua característica permanecer em um plano secundário da enunciação, devendo ser percebido, não, porém, ser objeto do discurso (MAIGUENEAU, 2009: 268). Na realidade, podemos perceber que a imagem masculina criada, e principalmente idealizada, por João do Rio para o personagem Oscar Flores revela um ethos criado e repetido há muito tempo, e que se materializa linguisticamente na forma de uma imagem masculina sonhada pelas mulheres e idealizada pelos homens. Mesmo através de um personagem que apresenta uma estranha moléstia, a imagem masculina que prevalece é a do rapaz encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado, rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante. Essa é a imagem masculina que identificamos em Oscar Flores no conto A mais estranha moléstia.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Paulo Barreto (João do Rio) Biografia. Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2011.

ANTUNES, Irandé. Análise de textos – fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

CEREJA, William; COCHAR, Thereza. Texto e Interação: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos. 3. ed. São Paulo: Atual, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 17 ed. São Paulo: Ática, 2007.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 4. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

_____. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008 a.

_____. A propósito do Ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; Salgado, Luciana. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008 b.

_____. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2009.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

L.F. RIESEMBERG, L. F. Resenha crítica de Dentro de Noite de João do Rio. Disponível em: Acesso em: 22 mai. 2011

RIO, João. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002

S. JÚNIOR, Alcides Mendes. Pa(lavras) em terra: forja e coifa de uma região. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2006.








Nenhum comentário:

Postar um comentário