Ouvir alunos do
ensino fundamental e médio esbravejarem frases do tipo "Eu detesto
português", ou "Eu já sei português, então pra que serve
isso?" ou, pior, "Eu não sei português!" é
algo muito comum no cotidiano dos professores de Língua Portuguesa. Sim, Língua
Portuguesa, pois a aula não deveria ser de gramática, mas de Língua viva, real,
do dia a dia. O português das gramáticas parece um idioma sem vida, empoeirado,
algo que não se pode alcançar, de difícil acesso. Digo isso, pois é o que eu
vejo no rosto de cada aluno meu quando tenho que repassar as regras para que
eles possam ter êxito em concursos, por exemplo.
Acredito que
pelo fato de saber um pouco mais sobre as temíveis nomenclaturas gramaticais eu
me torne um ser admirável, de grande sapiência; às vezes, percebo no olhar da
minha turma, formada por adultos, alguns bem mais velhos do que eu, um ar de
fascínio ao mostrar a eles que há um tal sujeito oculto que difere do sujeito
indeterminado, sendo que o sujeito é considerado um termo essencial da oração.
Mas como ele pode ser essencial se, muitas vezes, não está lá? E o que dizer
dos exercícios mecânicos e repetitivos de ortografia sobre o uso do
"G" e do "J"? Mas deixemos de gramatiquices...
A pergunta que
não quer calar é: por que insistem em cobrar regras, cheias de exceções? E os
porquês? Na fala ele é apenas um, mas na escrita ele se desdobra em quatro.
Talvez seja por isso que escrever de acordo com a norma padrão culta, para
muitos, transforme-se em um grande tormento, uma prática surreal. Ter que
lembrar qual tipo de "porque" usar, com certeza, destrói a inspiração
de qualquer um. Talvez seja por isso, também, que os grandes escritores digam
ter sido alunos não tão bons na disciplina e que hoje recorram aos revisores de
textos para darem conta dessas estranhezas gramaticais.
Deveríamos,
então, valorizar menos as regras e focar o ensino na prática de textos
coerentes e coesos, pois do que adianta decorar uma lista de conjunções se na
prática o "e" de adição pode funcionar também como adversativo? Que
tal estudar gramática em textos reais e não em frases soltas expostas na lousa?
De que adianta
os compêndios gramaticais instruírem que o verbo namorar é transitivo direto,
ou seja, não aceita a preposição "com", se 10 entre 10 falantes dizem
que a fofoca da semana é que aquela famosa namora com o galã
mais cobiçado do país? E a magia de dizer que você prefere mil vezes a comida
da sua mãe do que a daquele restaurante caro e badalado? Mas
"preferir mil vezes" e usar "do que" é um erro crasso para
muitos gramáticos.
Às vezes, chego
a pensar que falar segundo a gramática normativa deixa a vida sem cor, sem
emoção. Não dá para expressar muito sentimento dizendo no PB (português brasileiro) "Amo-te":
parece que a ênfase está no "te" e não no ato de amar. Deve ser por
isso que a licença poética existe e os artistas abusam e usam dos desvios
gramaticais. Nesta ocasião, lembro-me do poema Evocação do Recife,
do modernista Manuel Bandeira:
"[...] A vida não me
chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada [...]"
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada [...]"
E já pensaram
se o famoso jingle de uma marca de iogurte seguisse a norma padrão? Ficaria
assim: "Dá-me, dá-me, dá-me, dá-me um Danoninho...". No
mínimo estranho, não é? E a linda canção do poeta Cazuza, famosa na voz da
saudosa Cássia Eller, ficaria "Quem sabe eu ainda seja uma
garotinha ...". Não soou bem, não acham? É por isso que Renato Russo
poetizou "[...] eu canto em português errado [...]": será
mesmo? Isso porque a gramática normativa, ao pé da letra, se distancia muito da
nossa fala corriqueira. E dá para acreditar que há alguns professores que
insistem em utilizar tais gêneros para fazerem análises gramaticais?
Mas,
respondendo à pergunta feita no título: bom, como já dito, ela ainda é muito
solicitada em provas avaliativas em todo o país e questões sobre regência,
concordância, uso da crase e dos porquês, que tanto atormentam aqueles alunos
mencionados no início do texto, insistem em aparecer como forma de mensurar seu
conhecimento sobre a nossa "última flor do Lácio, inculta e
bela" - verso escrito, inclusive, por Olavo Bilac, que valorizava
a arte pela arte e não a norma pela norma; pois, se assim fosse, com certeza a "última
flor do Lácio" seria "muito culta e nada bela".
Assim, a função
ímpar da escola precisa ser o de formar leitores e escritores competentes,
escritores que saibam produzir textos além da mecânica redação para
vestibulares, leitores capazes de compreender enunciados diversos e textos do
dia a dia. Então, torcemos para que os professores saibam adequar as propostas
de leitura ao seu público alvo e que os clássicos da Literatura sejam
apreciados com deleite e não por imposição.
Logo, faz-se
necessário adotar novas práticas de ensino e métodos didáticos eficientes:
ambos devem ser prioritários para uma disciplina tão relevante no currículo
escolar. Dessa forma, teremos estudantes apaixonados pela nossa língua, que por
ser tão nasalizada merece o status de "língua do dengo",
e não temida e repudiada pelas enfadonhas conjugações verbais e análise
sintática.
*Carla Cunha é
graduada em Letras/Inglês pela Universidade Salvador (UNIFACS), pós-graduanda
em Gramática e Texto e tutora de disciplinas EaD e semipresenciais da UNIFACS.
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